Aprendendo com a História

Aprendendo com a história.
Ricardo Gondim

No dia 18 de novembro de 1978, um pastor pentecostal que fôra, inclusive, missionário em Belo Horizonte, Minas Gerais, conseguiu induzir quase mil pessoas (913) a se suicidarem na Guiana, num dos mais enigmáticos e chocantes eventos do século XX.

Todos os estudos sobre a tragédia continuam sem conseguir explicar o que aconteceu e quais processos fizeram desse movimento uma referência de como a religião pode descambar até matar.

O que intriga é que Jim Jones não usou de coerção e nem fez lavagem cerebral para produzir tanta insanidade coletiva. Em Jonestown havia guardas armados, mas todos, ao invés de fugirem, também morreram – os únicos tiros foram disparados para tirar a vida do próprio Jim Jones e de Anne Moore, sua seguidora mais próxima, aparentemente num duplo suicídio.

A gravidade do que aconteceu ali no norte da América do Sul se agravou com a notícia de que alguns convertidos que, por acaso, não estavam presentes no dia trágico, posteriormente se mataram . E alguns dos que não conseguiram acabar com a própria vida, expressaram pesar: Eu queria morrer com meus amigos, queria fazer o que quer que eles quisessem fazer.

Os primórdios

Para compreender o que aconteceu na Guiana é preciso voltar e pesquisar os primórdios do Templo do Povo na Califórnia. A igreja de Jim Jones mesclava a fé pentecostal com um certo engajamento político que buscava maior justiça social.

Jim Jones montou sua igreja atraindo predominantemente pessoas marginalizadas. No auge do movimento, chegou a lotar auditórios com 5.000 pessoas e a maioria era negra (80%) e pobre; e dois terços, mulheres. Sua capacidade para atrair os estigmatizados vinha de seus arroubos solidários. Na apresentação de uma reunião Jones pregou:

“Aqui está um homem que diz: quando eu tiver um lar, vocês terão um lar. Aqui está um homem que tem apenas um par de sapatos, nenhum carro e uma muda de roupas – eu acho que o terno que está usando esta noite foi emprestado. Aqui está um homem que trabalha mais de vinte e quatro horas por dia. Aqui está JIM JONES”.

Na verdade, Jones não mentia sobre o dinheiro. Ele não ligava para riquezas e não guardava fortuna pessoal. Pelo contrário, Jones foi  tomado por um sonho de criar uma sociedade igualitária, socialista, e por ela passou a trabalhar dia e noite.

Jones acreditava que poderia repetir a Igreja Primitiva, onde as pessoas de diferentes classes e origens étnicas viviam harmoniosamente repartindo tudo o que possuiam. Charles Lindholm (Carisma, Jorge Zahar Editor) afirma que em cima dessa temática, o Templo do Povo obteve um sucesso inicial impressionante:

“Organizado como uma comunidade cooperativa, tendo Jim Jones como o elemento orientador, o Templo do Povo oferecia uma alternativa para vidas em desespero, para o isolamento e a humilhação; uma nova visão do mundo não era apenas discutida, mas vivida. Tanto os brancos da classe média como os negros empobrecidos, encontraram na experiência do Templo algo de valor absoluto. Escolheram viver nesta comunidade, e vários deles preferiram morrer para não abandoná-la.

O que aconteceu com essa comunidade, aparentemente bem centrada num projeto de inclusão social, que a fez perder o rumo e acabar numa tragédia tão grande? Devemos concentrar nosso foco em seu fundador e líder.

Ainda criança, Jim Jones gostava de trancar-se no sótão de sua casa para treinar pregações e testar sua capacidade de cura divina. Isso foi lhe dando uma sensação falsa de onipotência que começou a se enraizar em seu peito. 

Quando alcançou seus 22 anos de idade, Jones contraiu uma doença que o deixou comatoso; depois de curado, filiou-se a uma igreja pentecostal e passou a ser um requisitado e bem sucedido pregador.

Jim Jones pentecostal

A partir desse sucesso, Jim Jones fundou uma igreja pentecostal no estado de Indiana. Em todos os cultos havia uma exagerada ênfase nos dízimos e nas ofertas como “prova do amor” a Deus e à sua causa . 

Sua igreja repetia pregações messiânicas, cheia de ódios contra a sociedade e repletas de paranóias conspiratórias. Sempre havia ameaças no horizonte de pessoas que pretensamente desejavam "derrubar" a obra de Deus. 

Lindholm descreve o ambiente das reuniões:

“As sessões eram longas, exaustivas e profundamente emotivas, como uma montanha russa de altos e baixos, momentos de fervor que deixavam a congregação tanto fatigada quanto inspirada. O próprio Jones vibrava como um dínamo de energia”.

O Brasil e sua influência 

A fatiga também alcançou o próprio Jim Jones - seu dínamo estava quase parando. Jim Jones teve um um esgotamento nervoso e precisou buscar um lugar de refúgio. Advinha o lugar que ele escolheu? O Brasil.

 Passou dois anos aqui. Não se sabe exatamente o que aconteceu neste sul do Equador, mas a família Jones não conseguiu se integrar à cultura brasileira, que ele considerava “exageradamente libertina". Jones também não se adptou à liturgia pentecostal que, segundo ele, tinha "cultos emocionais demais para o seu gosto”. 

Contudo, o Brasil o marcou para pior. Logo que retornou aos Estados Unidos, declarou: “Eu sou o único Deus que vocês jamais verão”. 

Seu delírio de ver-se como Deus inaugurava sua fase final, que recomeçou na Califórnia, precisou refugiar-se na Guiana e terminou com o Q-Suco misturado com cianureto.

Lindholm sugere que só pode ter acontecido algo muito estranho no Brasil, pois ao recomeçar, além de achar-se Deus, as reuniões do Templo do Povo passaram a denunciar com muita ênfase, os aspectos “anti-sociais” do comportamento humano, principalmente as práticas sexuais. 

Nos cultos, as pessoas eram obrigadas a tomar posição, acusando umas às outras de egoísmo, de serem portadoras de desvios sexuais e de outros crimes contra a comunidade, com os parentes mais próximos e amantes sendo chamados para liderar os ataques.

Quando os membros da igreja exigiam para que as outras pessoas fossem disciplinadas por pecados sexuais, Jim Jones se apresentava como a mais concreta encarnação da misericórdia.

“O amor que você encontrar lá fora não vai te sustentar, querido, porque não é o amor que você conhece. Você nunca será amado novamente com a mesma intensidade do meu amor. Jamais... Meu Deus, se eu tivesse alguém que me amasse tanto quanto eu amo alguns de vocês, isto seria de que eu precisaria na vida. Ninguém jamais me amou tanto assim.”

Nesse clima de auto proclamada piedade, ele introduziu uma pregação desagregadora da família, ensinando que as pessoas cortassem com os laços familiares. Jim Jones não mediu palavras quando impôs essa exigência no Templo:

Está na hora de vocês cortarem todos os seus laços de família. Agora, esta igreja é a sua família. Ligações consangüíneas são perigosas porque impedem as pessoas de serem totalmente dedicados à causa...  As famílias são parte do sistema inimigo. Eles não amam vocês. Se vocês estiverem com problemas, só Jim e a família de sua igreja estarão lá para ajudá-los.

A manipulação

A partir daí, aconteceu um salto. Jim Jones passou a controlar a educação dos filhos, a coordenar os casamentos (geralmente sem afetos e sem amor romântico); e, finalmente, a atacar a relação marido e mulher. Jones afirmava que as relações sexuais nos casamentos não passavam de uma farsa para esconder o homossexualismo dos maridos, e que as mulheres precisavam experimentar o verdadeiro orgasmo com ele – que equivalia a uma experiência transcendental.

Jones se fortalecia, maculando a dignidade das pessoas. Muitos homens acabaram por admitir que desejavam, sim, manter relações com o líder - uma admissão masoquista de quererem ser dominados por ele:

Reiterman e Jacobs, sobreviventes do Templo, afirmam:

Aqueles que mostravam interesse no sexo oposto – e estavam portanto “compensando sua homossexualidade” – eram humilhados, ou algumas vezes sodomizados por Jones para provar sua homossexualidade... 

Os contatos sexuais de Jones com homens geravam enormes conflitos entre alguns deles. Ele tornava suas lições de sodomia o mais humilhante possível por sempre assumir a posição do dominador. 

Quando conquistava seus parceiros, dizia-lhe repetidamente que aquilo era para o seu próprio bem. Não tinha prazer nenhum no ato, dizia-lhes, mas procurava ter certeza de que eles o tivessem.

Quais foram  as técnicas, mesmo intuitivas, que Jim Jones usou para obter tamanho êxito em sua empreitada? – bem sucedida, embora sinistra.

1. Ele formou um grupo que fortalecia o mito da “unção” especial que repousava sobre sua vida. Jim Jones devia ser tratado como um messias. Jones se tornava inacessível pelo grupo que, por sua vez, se energizava pelo privilégio de desfrutrar da sua intimidade.

2.
 Os “milagres” operados por Jones eram super-dimensionados. Os seus auxiliares criaram um clima de que só os mais fracos e os menos “espirituais” se atreviam questionar as "maravilhas" de Deus que fluíam pelo "instrumento divino".


3.
 Jones usava o discurso da humildade para maquiar sua arrogância. Quando alguém o criticava ele reagia: “Eu adoraria ser capaz de admitir suas críticas... Tudo o que vocês falam sobre qualquer outra pessoa, eu procuro ver dentro de mim, mas vocês precisam de um líder forte e não seria sensato eu vulnerabilizar-me”. 


4.
 Jones procurava destruir as pessoas, fragmentando suas identidades; e ele próprio se apresentava como a "cura" para o mal que acabara de produzir nelas. 


5
.  Jones mostrava o mundo como um lugar perigoso, contaminado e irremediavelmente corrupto. Seu discurso era totalmente pessimista; intentava fazer com que as pessoas odiassem a sociedade, os meios de comunicação, o governo, e fizessem do Templo do Povo o único paraíso na terra. 


6
. Jones aumentou seu nível de exigências. Os compomissos passaram a ser cada vez mais pesados. Os verdadeiros discípulos deviam, primeiro, ofertar, depois, doar todos os bens materiais e chegaram, por último, a sacrificar suas vidas. 


7
. Jones propôs que a única maneira de sobreviver às tentações do mundo era se isolando dele para re-iniciar uma nova civilização.

A Guiana e Jonestown.

Assim, Jones mandou alguns de seus discípulos para a Guiana, comprou glebas de terra e fundou seu “paraíso”. Contudo, começaram a chegar notícias nos Estados Unidos de que esse grupo bizarro cometia aberrações em nome da fé e a Câmara dos Deputados fez parceria com a CIA para investigar o caso.

O deputado federal William Ryan viajou dos Estados Unidos para Jonestown só para constatar se cidadãos americanos vinham sendo mantidos ali contra sua vontade.

Com a visita, Jones pressentiu que a casa ia cair. O estopim foi aceso quando alguns seguidores seus, cansados com Jonestown, pediram para voltar para os Estados Unidos junto com a caravana do Congresso. 

Jones se sentiu traído e ameaçado; e totalmente consciente de que seu Templo estava condenado. Foi aí que ele reagiu violentamente, atirando e matando o deputado e parte de sua comitiva. 

Quando aconteceu uma nova incursão a Jonestown, constatou-se o horror. Num ritual macabro, 913 pessoas haviam se envenenado.

O último testamento de Anne Moore, escrito em Jonestown é emblemático:

Jim era a pessoa mais honesta, mais amorosa e mais preocupada conosco que eu jamais encontrei ou conheci... ele sabia qual mesquinho era o mundo e pegava todos os animais desgarrados e tomava contra de cada um. Seu amor pelos humanos era insuperável... Jim Jones nos mostrou tudo isto – que nós podíamos viver juntos com nossas diferenças, que nós somos todos os mesmos seres humanos... Nós morremos porque vocês não nos deixariam viver em paz.

Ah! Antes que me esqueça. No pórtico da casa onde vivia, Jim Jones mandou escrever uma frase de George Santayana –“Those who do not learn from history are doomed to repeat it” – aqueles que não aprendem da história estão condenados a repeti-la.

Soli Deo Gloria.